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Mora nos Clássicos

Você iria de carro até o Alaska em 1955? A Operação Abacaxi foi

Rodrigo Mora

01/08/2018 07h00

(SÃO PAULO) – O uruguaio Hugo Vidal, o britânico Charles Downey e o brasileiro Jan Stekly eram membros do Grupo Escoteiro Carajás, de São Paulo. Numa das reuniões da entidade, em 19 de março de 1954, souberam que o VII Jamboree seria realizado no ano seguinte, no Canadá.

(Jamboree é a "Copa do Mundo" do Escotismo, realizado de quatro em quatro anos. Depois de passar por Europa, África e Ásia, aquele era o primeiro na América).

Decidiram, então, chegar lá de carro – o que nenhum deles tinha. O caminho mais óbvio foi emprestar um CJ-3B da Agromotor, a distribuidora Jeep no Brasil daqueles tempos e empregadora de Vidal. A incipiente indústria nacional de autopeças também pegou carona na jornada dos três escoteiros para, em troca de patrocínio, divulgar sua existência.

(Foto: Revista Overlander Brasil)

Os três rapazes foram buscar o Jeep na linha de montagem para em seguida desmontá-lo e remontá-lo com os componentes das 25 empresas que participaram do projeto. Depois, foi só pintar o carro de verde e amarelo.

Batizaram a expedição de Operation Pineapple, ou "Operação Abacaxi". Claro que a pergunta mais ouvida foi sobre o nome da missão, sempre acompanhada da explicação que, no Brasil, a fruta é associada a um problema. De quebra, provariam que peças nacionais eram confiáveis. Vidal, único dos três ainda vivo, tem a resposta na ponta da língua até hoje.

Todas as adaptações (teto de lona substituído por um de aço, tanques de combustível extras, tanque de água, suspensão elevada, etc) concluídas, partiram no dia 2 de abril de 1955 rumo a Niagara-on-the-Lake, uma província de Ontario. Voltaram em 14 de abril de 1956. Sessenta e dois anos depois, a jornada, enfim, se converteu em um livro, "Operação Abacaxi: flashes de uma aventura", escrito só agora por Vidal e lançado pela editora Overlander.

Os primeiros dos 72.985 quilômetros totais percorridos foram pelo Sul. "O traçado era basicamente pelo Pacífico, sendo impraticável pelo Atlântico devido à selva amazônica. Não existiam condições de atravessar o Paraguai e a Bolívia. Restava dar a volta pelo Uruguai, Argentina e Chile para iniciar a subida rumo ao Norte", explica Vidal em seu livro.

Uma viagem tão longa – foram 375 dias na estrada – exige regras. Flertes passageiros eram permitidos, mas namoros sérios, não. Uma oportunidade para tomar banho e fazer a barba não poderia ser desperdiçada; sempre expressar seus sentimentos e ideias e o mais importante para o grupo: quando não houvesse unanimidade, a maioria decidiria, mas a minoria cooperaria.

"E se o clima ficasse muito tenso, estacionávamos o Jeep num lugar seguro, dávamos um pouquinho de dinheiro a cada um e desapareceríamos. Nos encontrávamos no Jeep dali a dois dias. Santo remédio", relembra Vidal.

Visita à fábrica da Willys Overland, com direito a revisão do Jeep (Foto: Revista Overlander Brasil)

Houve muitas passagens engraçadas, como a do rapaz chileno que, ao cruzar o caminho dos escoteiros, disparou: "já pensei em fazer uma viagem assim, mas…e se chover?".

Dormir era uma arte: "tínhamos uma pequena barraca, feita por nós, pois não existia comércio de material de camping. Mas o mais frequente era estender uma lona no chão, entrar nos sacos de dormir e…até amanhã", relata trecho do livro. Em outras situações, eram recebidos por gente que simpatizava com a aventura e oferecia abrigo – até numa cela de delegacia dormiram.

Pularam da Colômbia para o Panamá de navio, e de lá para a Costa Rica de avião, um cargueiro Douglas DC4 da Pan Am. Foi lá, quase entrando na Nicarágua, que capotaram o jipe. Nada grave, apenas arranhões no carro.

Honduras, El Salvador, Guatemala, México, EUA e, enfim, Canadá. Aquele Jamboree em Niagara-on-the-Lake recebeu mais de 12 mil escoteiros, de 68 países.

O trajeto de volta não foi menos inusitado. Incluiu uma participação no programa Welcome Travellers, quiz que entrevistava visitantes de Nova York. Foram os vencedores, arrematando um pacote de prêmios que incluía títulos do governo, um freezer e uma viagem. Tudo prontamente vendido e convertido em recursos para uma esticada até o Alaska – que não durou muito, devido ao excesso de gelo nas estradas.

(Foto: Revista Overlander Brasil)

Ao fim da viagem, foram 19 países visitados, o que custou ao trio apenas US$ 4.500 e 11 pneus furados. Depois da Operação Abacaxi, cada um tomou seu rumo. Charles Downey virou representante comercial, Jan Stekly foi para o Canadá estudar Metalurgia e Hugo Vidal abriu uma empresa que produzia e comercializava, entre outros itens para veículos 4×4, a "roda livre", dispositivo icônico do mundo off-road inventado pela Warn Industries.

E o Jeep?

Foi devolvido a Agromotor após a viagem, e em seguida emprestado a uma corretora de valores que usaria o Jeep para divulgar a venda de ações da Willys Overland, que acabara de abrir capital. Vidal carrega os números do motor e do chassi até hoje na carteira, caso encontre um jipe igual ao da sua jornada de seis décadas atrás. Enquanto isso não acontece, lembra daqueles momentos toda vez que olha para o CJ3B que mandou restaurar à semelhança do original.

Foi um Jeep como esse que o trio de escoteiros usou para chegar ao Canadá e, depois, ao Alaska (Foto: Rodrigo Mora)

 

 

 

Sobre o autor

Rodrigo não Mora apenas nos Clássicos. Em sua trajetória no jornalismo automotivo, já passou por Auto+, iG, G1, Folha de S. Paulo e A Tarde - sempre em busca do que os carros têm a dizer. Hoje, reúne todos - clássicos e novos - nas páginas das revistas Carbono UOMO e Ahead Mag e no seu Instagram, @moranoscarros.

Sobre o blog

O blog Mora nos Clássicos contará as grandes histórias sobre as pessoas e os carros do universo antigo mobilista. Nesse percurso, visitará museus, eventos e encontros de automóveis antigos - com um pouco de sorte, dirigirá alguns deles também.